O rio Tejo, em Lisboa, foi o palco da Regata dos Grandes Veleiros, um dos maiores acontecimentos náuticos do mundo. A avaliar pelos relatos, foi uma experiência única para tripulações e visitantes.
"Espero que ainda me deixem entrar, pois só faltam 15 minutos para o fim do horário de visita", desabafa António Coelho, de 64 anos. Faz questão de mostrar o navio-escola Sagres aos dois netos. A doca de Alcântara, no Porto de Lisboa, foi o palco escolhido pela Sail Training International para celebrar os 50 anos da primeira Regata dos Grandes Veleiros. Entre 20 e 22 de Junho foi possível ao público visitar as 80 embarcações e conhecer os quase três mil tripulantes, sobretudo jovens entre os 15 e os 25 anos.
No Sábado à tarde, o último dia antes do desfile náutico que teria lugar no Domingo, eram ainda às centenas o número de pessoas que tentavam ver os veleiros. "Já esperei uma hora, mas gostava que eles vissem o barco por dentro". António teve sorte, e foi um dos muitos portugueses e estrangeiros a visitar o navio-escola português, com 89 metros e 202 tripulantes.
Os maiores, da classe A, foram os que atraíram mais atenções. A começar pela Sagres, acostada junto à Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos, ao lado do Creoula, outro navio português. O evento assinalou a primeira regata, realizada em 1956 entre Torbay, no sul de Inglaterra, e Lisboa.
Por esses dias, as dezenas de mastros rivalizaram em altura com as gruas do Porto de Lisboa. As entidades organizadores esperavam mais de um milhão de visitantes, mas o objectivo ficou a meio.
Ao lado da Sagres estavam outros veleiros da classe A, da Rússia, Polónia, Espanha e Itália. O mais concorrido era o Amerigo Vespucci, uma imponente galera de três mastros. "É o navio mais antigo da marinha italiana, com 75 anos", explicou a Tenente Laura Rivetti, de 27 anos. "Temos uma tripulação de 430 pessoas, das quais 150 são cadetes da Marinha que participam pela primeira vez. Os restantes fazem parte da tripulação permanente do navio".
Os visitantes não paravam de chegar. Francisco Colaço, de 62 anos estava maravilhado. "Já tinha visitado outros navios, mas este é muito bonito. Valeu a pena a espera", para ver o Vespucci, um participante assíduo na regata.
O navio militar mais civil
Ali perto, na doca, estavam os veleiros mais pequenos. O Capitán Miranda era o único proveniente de fora da Europa. Viajou desde o Uruguai com uma tripulação de 84 cadetes da Armada. "É um dos dez navios mais antigos do mundo, com 76 anos", explicou Enrique Quartino, de 23 anos. "Durante os quatro anos que passamos na Escola Naval temos poucas oportunidades para navegar. O curso é muito teórico", disse. "Esta viagem permitiu-nos conhecer uma boa parte do Mundo. De outra forma dificilmente teríamos conhecido a Europa", confessou.
Enrique não parece um marinheiro militar, e explica porquê: o Capitán Miranda "é provavelmente o navio militar mais civil da frota. Durante o dia não temos de andar fardados. Podemos andar apenas com a t-shirt e os calções do navio". Depois desta regata, Enrique espera voltar a navegar, mas não sabe ainda em que unidade naval irá ser colocado quando regressar ao Uruguai.
À saída do barco, a passagem estreita entre os armazéns e a doca era pequena para tantos visitantes. Com máquina fotográfica, telemóvel ou câmara de filmar, tudo servia para levar para casa uma recordação do evento.
Capitão há 22 anos
Junto à caravela Vera Cruz, uma réplica das embarcações quinhentistas portuguesas, estava o FAR Barcelona, uma escuna de dois mastros, de madeira negra. A embarcação, com 132 anos, é actualmente propriedade de um consórcio público de Barcelona. "É o barco mais antigo da frota e o último a inscrever-se", conta Miguel Borillo, de 48 anos. "E é a primeira viagem que fazemos depois do restauro do barco, que demorou 12 anos, e que significou uma quase reconstrução da embarcação", acrescenta.
Miguel é o director do Centro Náutico onde o barco foi restaurado e também o capitão da embarcação há 22 anos. "Para nós tem um significado especial esta participação, dado que no próximo ano a regata vai até ao Mediterrâneo". Apesar de ter encontrado mau tempo, com vento e ondas altas, o FAR aguentou bem a viagem. A tripulação é de 25 pessoas, metade das quais jovens aprendizes. "No Centro estamos a formar jovens para termos mais gente habilitada a navegar o FAR. Com a actual tripulação permanente não conseguimos ter uma actividade regular ao longo do ano".
Os enjoos da praxe
A bordo do Bodrum, um veleiro turco de dois mastros, a viagem foi algo atribulada. Um temporal dificultou a vida aos 20 tripulantes, a maioria estudantes universitários. Para Mehmet Kart, de 20 anos, o pior foram os enjoos. "Sofri imenso do estômago. Vomitei várias vezes", mas o balanço é positivo. "Aprendi a velejar durante a viagem, pois nunca tinha participado numa aventura deste género". "É uma experiência inesquecível", diz Mehmet, que nunca tinha vindo a Portugal. O Bodrum é um barco recente, de 34 metros, construído em 2000. Pertence a uma escola de vela.
Quem ultrapassou bem os enjoos, foram os tripulantes do Lord Nelson. Trata-se de um barco especial, construído de forma a possibilitar a participação de tripulantes com deficiência física, incluindo pessoas em cadeiras de rodas. O navio é um dos dois barcos propriedade da Jubilee Sailing Trust, uma fundação inglesa. Cada embarcação suporta uma tripulação de 50 pessoas. Dez são profissionais. Dos restantes, metade são normalmente pessoas com deficiência física. O Lord Nelson pode acomodar até oito utilizadores de cadeiras de rodas. Janine Burley, a médica de bordo, explica que "todos participam na rotina diária, dado que o barco está preparado para isso". "É um barco único no mundo, construído com este propósito. Temos elevadores, uma bússola sonora para cegos, alarmes vibratórios para surdos e radares de alto contraste para amblíopes". No Lord Nelson não existem barreiras, a não ser a falta de vontade.
De volta ao mar
O evento conquistou os lisboetas e os muitos turistas que visitam a capital. Além da espera por vezes longa nas filas, incluindo para atravessar a ponte que dava acesso à doca dos grades veleiros, a nota negativa foi para a falta de instalações sanitárias. As instalações de um pequeno café existente do lado da Rocha do Conde de Óbidos foram insuficientes para tantos visitantes.
Para tristeza dos que não conseguiram visitar os veleiros, a regata partiu para a segunda etapa no Domingo de manhã. De velas ao vento, grandes e pequenos, acompanhados de dezenas de embarcações particulares, os navios participantes desfilaram vagarosamente pelo Tejo. Ao longo de duas horas, milhares de curiosos puderam ver ou despedir-se dos mais belos veleiros do mundo. Munidos de binóculos, teleobjectivas ou mesmo a olho nu, encheram a margem ribeirinha de Alcântara à Torre de Belém. O próximo destino é Cádiz, em Espanha. A Portugal, os grandes veleiros só regressam em 2008.
Luís Galrão
Revista do Cenjor
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